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A empatia no tratamento dos “Três Cristos”

Atualizado: 11 de jul. de 2023

Antes de iniciar a minha redação desta análise do filme Três Cristos, de 2017, disponível no streaming Netflix, é importante frisar que os meus comentários são referentes ao filme e não ao livro The Three Christs of Ypsilanti (Os Três Cristos de Ypsilanti), de 1964, do psicólogo Milton Rokeach, que serviu como base para o desenvolvimento do enredo da película; infelizmente, ainda não li a obra. Portanto, posso me equivocar sobre alguns fatos apresentados.

O livro, assim como o filme, relata o experimento do psicológico Rokeach (no filme, chamado Dr. Alan Stone), realizado em 1959, com três pacientes esquizofrênicos paranoicos, que acreditavam ser Jesus Cristo. Cada “cristo” se nomeou de uma forma: Joseph Cassel, dizia ser Jesus Cristo de Nazaré; Clyde Benson, Jesus Cristo não de Nazaré; e Leon Gabor, que embora se identificasse como Cristo, se dizia Deus, casado com a Virgem Maria.

Rokeach era fascinado pela noção de identidade e acreditava que, reunindo os três "cristos" em um único ambiente, poderia curá-los de seus delírios. Além de ficarem na mesma ala de um hospital psiquiátrico, localizado em Ypsilant (Michigan – EUA), Rokeach passou a realizar reuniões de grupo com os três.

É importante lembrar que, naquela época, o tratamento de pacientes com doenças mentais era a combinação de eletrochoques e administração de altas doses de antipsicóticos, o que Rokeach era completamente contra. Sendo assim, um dos primeiros acordos que fez com os "três cristos" foi que eles não seriam submetidos ao eletrochoque.

Ao longo da narrativa, vamos conhecendo um pouco das características psíquicas de cada "cristo". Joseph se dizia o único e que iria salvar o mundo com o seu “sangue”, ou seja, derramar o seu sangue para salvar o homem de seus pecados. Clyde, que dizia não ser de Nazaré, se achava “sujo e fedido”, pois havia perdido a esposa devido a um aborto complicado, durante o qual ele sentia o cheiro de putrefação do feto; tomava vários banhos por dia e dizia que a bela esposa havia morrido, porque sua semente era podre e, portanto, ele precisava se purificar para ser perdoado. Já Leon tinha a sexualidade muito aflorada e uma relação bastante conturbada com a mãe, pois a mesma o criou dentro de dogmas religiosos muito severos. Acredito que no livro esses detalhes sejam melhor apresentados.

As primeiras reuniões foram desastrosas, pois os “cristos” se recusavam a abdicar de suas crenças, sendo hostis e agressivos uns com os outros. Percebendo que o seu projeto poderia ruir, Rokeach passa a adotar novas estratégias, consideradas antiéticas.

Antes de apresentar um pouco essas estratégias e algumas consequências, sem dar spoiler, é fato que houve uma contratransferência do profissional com os seus pacientes, o que fica claro durante uma reunião de Rokeach com dois superiores, que começaram a questionar o seu método. Ao relatar os seus objetivos com os pacientes, ele fala que “o método pode salvar os quatro cristos”, colocando-se como um dos cristos. Ele percebe o ato falho e refaz a frase. Porém, é perceptível que o setting fora contaminado.

Segundo David E. Zimerman:


Todo terapeuta tem direito de sentir difíceis sentimentos contratansferenciais, como medo, dúvidas, raiva, excitação, confusão, tédio, etc., pois antes de ser médico, psicólogo, psicanalista, ele é um ser humano. Isso é possível desde que tenha capacidade, coragem e honestidade de reconhecê-los, de modo a não permitir que esses sentimentos se transformem numa contratransferência patológica e, melhor ainda, que possa transformá-los em empatia. Ele pode, sim, envolver-se afetivamente, porém jamais ficar envolvido nas perigosas malhas da contratransferência. (Zimerman, D. E. Manual de Técnica Psicanalítica: uma re-visão. Artmed, 2004. Pag. 141).

Rokeach percebeu que estava muito envolvido com os “três cristos”, mas acima de tudo, estava disposto a confirmar a sua teoria e “salvar os três (ou quatro) cristos”. Foi então que teve uma grande ideia: responder cartas que os pacientes escreviam, ou em nome do diretor da instituição ou em nome a quem eram direcionadas as correspondências. O objetivo era mudar o comportamento dos “três cristos” e fazerem que eles entendessem que não eram “cristos”. Foi um tiro no próprio pé.

Para Leon, escreveu em nome de Madame Yeti (a “esposa imaginária”). Nas cartas, supostamente enviadas pela Madame Yeti, questionava a ideia de Leon ser Jesus Cristo. Rokeach acreditava que se colocasse uma ilusão do paciente (a “esposa imaginária”) contra a outra ilusão (ser Jesus Cristo), ele poderia curar o delírio do paciente. No entanto, Leon passou a não mais se corresponder com a “esposa imaginária”, por não aceitar que sua identidade de Jesus Cristo fosse fictícia.

Com o fracasso das cartas, Rokeach envolveu uma assistente para flertar com o “cristo”, de Leon. Mas o paciente se apaixonou pela assistente e não foi correspondido, pois o “flerte” era parte do experimento. Ao perceber que não fora correspondido, suas ilusões foram fortificadas. No filme, são apresentadas outras trocas de correspondências com os dois outros “cristos”. Mas relatá-las aqui seria dar spoiler.

O tratamento com os “três cristos” durou dois anos, e Rokeach não “salvou” seus pacientes. Anos depois, o psicólogo reconheceu que seu trabalho foi antiético e que suas estratégias passaram dos limites. Na edição de 1984 do seu livro The Three Christs of Ypsilanti, pede desculpas:


Embora eu não tenha conseguido curar os três Cristos de suas ilusões, eles conseguiram curar a minha – a ilusão divina de que eu poderia mudá-los de forma onipotente e organizando e rearranjando de maneira onisciente sua vida cotidiana dentro da estrutura. (Rokeach, M. The Three Christs of Ypsilanti. NYRB Classics, 1984).

Apesar do tratamento dos “três cristos”, aplicado pelo psicólogo Milton Rokeach, em 1959, não ter dado o resultado esperado pelo psicólogo, Rokeach foi extremamente importante nas novas condutas com os pacientes psicóticos. Ele, certamente, foi um dos pioneiros em dar voz a esses pacientes, a ouvi-los com afeto e, hoje, sabemos que incluir a escuta do psicótico no tratamento é possível, e contribui para promover melhor qualidade de vida a esses pacientes.



 
 
 

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